O marxismo em cheque diante da experiência revolucionária soviética

Soldados revolucionários armados carregando uma bandeira em que se lê “Comunismo”, na rua de Nikolskaya, Moscou, em Outubro de 1917.

Introdução

Qual filosofia guiava a política soviética? Segundo o Secretário Geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) de 1920 à 1922 e Primeiro-Ministro da nação de 1941 à 1953, Josef Vissariónovitch Stalin: “O materialismo dialético é a teoria geral do Partido marxista-leninista.”

Entretanto, a descontinuidade das políticas públicas soviéticas, por exemplo, os casos de terror durante os julgamentos de moscou, que posteriormente se massificam, o caráter cada vez mais desenvolvimentista da economia que via no trabalho uma espécie de efetivação do sujeito, são todos episódios que demonstram a necessidade de uma investigação apurada sobre o que levou a principal experiência revolucionária mundial às contradições internas tamanhas que dividem toda a crítica marxista de sua época em “stalinistas” e “anti-stalinistas”.

Isso nos leva a uma questão crucial: Se o materialismo dialético parido enquanto tal nos escritos de Karl Marx irrompe com o silêncio ensurdecedor do liberalismo perante o estado deteriorado da realidade durante o século XIX, o que aconteceu para que essa condição crítica se transmutasse em aspectos anômalos de um processo que se nomeia emancipador? Em verdade, a resposta completa para essa pergunta não se encontrará nesta monografia, tampouco seria possível em todo um livro. Contudo, ela se faz imprescindível para um recorte focal: O materialismo dialético, o que é esta filosofia para Karl Marx em seus manuscritos, mais especificamente em seu capítulo denominado “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”, e para Josef Stalin, o dirigente da União Soviética responsável por tentar levar a cabo o socialismo após a morte de Vladimir Ilych Lenin e durante a Segunda Guerra, em sua obra Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico? Meu objetivo é apontar que esses dois nomes chegam a duas respostas que são distintas e, ainda, contraditórias entre si.

Seção 1: O materialismo dialético para Karl Marx em sua obra Manuscritos econômico-filosóficos.

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Para que possamos pontuar qual a perspectiva de Marx sobre o materialismo dialético, analisarei o caminho percorrido pelo autor no capítulo de seus manuscritos em que discorre sobre sua crítica à dialética hegeliana, como já citado anteriormente, no qual conclui uma perspectiva uníssona, nomeando-a de “naturalismo”.

A respeito da obra em que se encontra o respectivo capítulo, cabe um breve comentário com o objetivo de situar o lugar onde estamos pisando. A partir da crítica imanente a Adam Smith, J. -B. Say e David Ricardo, a quem Marx aglutina suas concepções no termo “economia nacional”, é oferecido ao leitor o panorama geral do que significa o desligamento do autor da esquerda hegeliana, desligamento esse que se traduz em germe do que se constituiria enquanto um pensamento autônomo, o marxismo. Nesse sentido, a crítica ao liberalismo, a análise da movimentação do capital e a descrição, até então inédita, da alienação enquanto um processo econômico-social são elementos que formalizam o que posteriormente nos manuscritos é desenvolvido enquanto o cerne desses apontamentos, a crítica ao idealismo hegeliano e ao materialismo feuerbachiano em vias de uma reformulação da dialética.

Isso significa que para que se desenvolva uma consequente leitura do marxismo enquanto crítica da economia política é necessário, antes, entender o que difere Marx da hegemonia do pensamento alemão em que estava inserido. Mais precisamente, é necessário assinalar o que Marx entende enquanto o “envoltório” místico que recobre a dialética hegeliana e qual é sua movimentação para desvelá-lo.

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“O que fazer diante da dialética hegeliana?” É com essa pergunta que Marx inicia um de seus últimos escritos dos manuscritos de Paris. Ela apontaria para uma falta de consciência de parte da intelectualidade alemã, os jovens hegelianos, a respeito do sistema crítico que o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel formula principalmente em suas obras Fenomenologia do espíritoCiência da lógica e a Enciclopédia. Dentro desse contexto, Ludwig Feuerbach é caracterizado enquanto aquele que rompe com o caráter “acrítico” dessa intelectualidade ao dar os primeiros passos na direção contrária da mera reprodutibilidade das formulações de Hegel, fundamentando, nas palavras de Marx: “O ponto de partida do positivo, da consciência sensível”.

Para tal, Marx vê em Feuerbach um confrontamento importante ao conceito hegeliano de negação da negação na medida em que se afirma como absolutamente positivo, que resulta em si mesmo e parte de si próprio. Assim o é, pois Hegel parte do estranhamento da abstração pura e o suprassume assentando o particular, o sensível, entretanto retornando ao abstrato logo em seguida, reestabelecendo o positivo e resultando, em últimas consequências, em uma habilitação de uma concepção puramente especulativa da história. Diz Marx:

Assim como a Enciclopédia de Hegel que começa com a lógica, com o pensamento especulativo puro, e termina com o saber absoluto, o [espírito] consciente-de-si, [espírito] filosófico ou absoluto apreendendo-se a si próprio, isto é, o espírito abstrato sobre-humano, a Enciclopédia toda acaba sendo nada mais do que a essência propagada (ausgebreitete) do espírito filosófico, sua auto-objetivação. Assim, o espírito filosófico nada mais é do que espírito pensante [a partir] do interior de seu estranhamento-de-si, isto é, espírito estranhado do mundo, [espírito] que se concebe abstratamente. (Marx, 2004, p. 120)

Contudo, Marx não deixa de exaltar o sistema da Fenomenologia enquanto consequentemente crítico, além de ser fundamental para o pensamento alemão de sua época  —  no sentido de que é ali onde se fundamenta o núcleo duro do pensamento hegeliano. O grande problema é que essa crítica se encontra afogada em um idealismo adotado por Hegel, que reconhece o estranhamento do sujeito para com o Estado, por exemplo, mas o reconhece tão somente em sua forma de pensamento, “um estranhamento do pensar puro”. Partindo do pressuposto de que todas as formas de estranhamento se dão em um campo abstrato, a exteriorização tem seu fim afunilado ao mesmo destino, pois aquele seria a suprassunção desta. O resultado é a oposição entre sujeito e objeto, entre a efetividade sensível e o pensar abstrato. No caso, a efetividade sensível seria só mais um momento do processo de retorno ao abstrato, sendo a consciência-de-si sempre o fim último. O objeto traduz-se em consciência abstrata e é lido enquanto um mero momento negativo em relação à consciência-de-si.

Ainda, Marx se limitaria à crítica de Feuerbach caso buscasse apenas uma problematização do sistema geral da Fenomenologia, entretanto conseguiu enxergar que havia margem para a radicalização dessa crítica, um aprofundamento da problematização da negação da negação em Hegel a partir de seu capítulo final denominado “O Saber absoluto”. Nele, Marx não somente denúncia o caráter positivista de Hegel, ainda que crítico, como também contrapõe a raiz desse posicionamento, a saber: “A exteriorização da consciência-de-si põe a coisidade.” A coisidade é a essência objetiva do homem, aquilo que está posto em sua determinação essencial. A exteriorização, aponta Marx, não reflete o sujeito, mas sim “a subjetividade de forças essenciais objetivas”. Objetivas porque a movimentação da consciência a leva a recuperar para si sua exteriorização e, portanto, a objetividade, estando junto de si em seu ser-outro enquanto tal, apontamento que não escapa de Hegel, mas que contradiz seu próprio pensamento. Pois, o que se desenha é que a determinação da consciência está em relação contínua com o objeto. Nas palavras de Marx, a “totalidade de suas determinações faz do objeto em si a essência espiritual”. Portanto, a coisidade seria simplesmente uma consequência da exteriorização da consciência.

Visualiza-se a primeira formulação de um materialismo marxiano, o qual Marx nomeia de “naturalismo”, diferenciando-o do idealismo hegeliano e do materialismo feuerbachiano.

Mesmo posicionada a coisidade diante da exteriorização da consciência, Marx reitera que a coisa não se torna o novo absoluto. Porque, primeiro, a coisa é abstrata e não uma coisa efetiva, afinal é posta pela consciência-de-si. Em segundo lugar, a coisa não é autônoma, pois é, novamente, posta pela consciência-de-si, o que reafirma a atividade de pôr ao invés da coisidade em si. Escreve Marx:

É completamente plausível  que um ser vivo, natural, provido e dotado de forças essenciais objetivas, isto é, materiais, tenha objetos efetivo-naturais de seu ser, na mesma medida que a sua autoexteriorização (Selbstentäusserung) seja o assentamento (Setzung) de um mundo efetivo, mas sob a forma de externalidade (Äusserlichkeit), um mundo prepotente e objetivo, não pertence[nte] ao seu ser. Nisto, nada há de incompreensível ou de misterioso. Misterioso seria, antes, o contrário. Mas é igualmente claro que uma consciência-de-si, por meio de sua exteriorização, possa pôr apenas a coisidade, isto é, unicamente uma coisa (Ding) abstrata, uma coisa da abstração e nenhuma coisa efetiva. (Marx, 2004, p. 126)

O que Marx enfatiza, portanto, seria uma espécie de correlação entre o objeto e o sujeito em que o ponto constante de negatividade proposto por Hegel presente no objeto caracterizaria não uma nulidade, mas uma determinação do ser, algo que existe, portanto, fora dele. É por isso que Marx utiliza da palavra “naturalismo”, pois vê-se diante de uma correlação entre corpo e natureza. Isto é, as forças vitais do homem traduzem-se em pulsões diante da natureza, meio dos objetos dessas pulsões. “Mas esses objetos são objetos de seu carecimento (Bedürfnis), objetos essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de suas forças essenciais.” Isso significa que as pulsões dos sujeitos os efetivam assim que são supridas com um objeto externo a eles. Tal externalidade é imanente à condição de ser um ser objetivo, pois estar determinado pelo objeto significa possuir fora de si tal objeto. Significa também, portanto, que todo ser objetivo é um objeto de um terceiro, o determina tal qual é determinado. O autor chega à sua máxima: “Um ser não objetivo é um não-ser.” A seguinte citação deve nos ajudar a conectar o esquema da coisidade proposto por Marx com o sistema dialético geral:

O positivo, que Hegel aqui conseguiu  —  na sua lógica especulativa —, é que os conceitos determinados, as formas de pensamentos universais fixas, em sua autonomia diante da natureza e do espírito, são um resultado necessário do estranhamento universal da essência humana, portanto também do pensar humano, e que Hegel os apresentou e reuniu, por isso, como momentos do processo de abstração. Por exemplo, o ser suprassumido é essência, a essência suprassumida, conceito, o conceito suprassumido… ideia absoluta. Mas o que é então a ideia absoluta? Ela se suprassume novamente a si mesma, se não quer voltar a passar de novo por todo o ato de abstração e contentar-se, assim, em ser uma totalidade de abstrações ou a abstração que a si se apreende. Mas a abstração que se apreende como abstração sabe-se como nada; ela tem de renunciar à abstração, e chega assim junto a um ser que é precisamente o seu contrário, junto à natureza. (Marx, 2004, pp. 133–134)

Isso nos leva a uma consideração: A precisão com que Marx escreve a sua crítica à dialética hegeliana se deve à imanência com que a conduz. Afinal, ele demonstra que a estrutura de pensamento projetada por Hegel é revolucionária, mas que nela própria estão presentes as contradições que não agem em prol de desbancá-la, mas sim de aprimorá-la. Extrai-se uma movimentação que nos é feliz: o pensamento hegeliano é ao mesmo tempo negado e conservado por Marx.

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O materialismo dialético de Karl Marx em seus manuscritos está diretamente vinculado à critica da dialética hegeliana. A negação da negação em Hegel age a centralizar o saber como o ato único da consciência, algo vem-a-ser na medida em que se sabe desse algo, pois a nulidade do objeto confirmaria a ausência de objetividade ao passo que o pensamento sabe desta nulidade enquanto autoexteriorização. Por outro lado, a suprassunção da consciência se dá em sua exteriorização, fazendo com que, como já desenvolvido, a objetividade esteja junto de si em seu ser-outro enquanto tal. Marx enxerga a contradição desse pensamento e o supera, entende a partir da suprassunção da consciência enquanto exteriorização que o objeto é um momento de determinação de sua totalidade e que, portanto, sujeito e objeto estão em uma correlação que fora cindida pelo pensamento hegeliano. Marx denomina o resultado da sua crítica como “naturalismo.”

Seção 2: O materialismo dialético para Josef Vissariónovitch Stalin em sua obra Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico.

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Cabe aqui, como na seção anterior, breves considerações a respeito da obra que iremos tratar adiante. O estudo de Stalin chega a ser ínfimo perto da importância de realizá-lo. Importância essa que se deve não porque Stalin é uma figura heroica, mas sim porque está diretamente ligado a um dos principais episódios do século XX, o início e o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ainda, está ligado à interpretação soviética do materialismo dialético, que, após sua efetivação, se tornou um dos principais motores das lutas da esquerda radical internacionalmente.

A reabilitação da imagem de Stalin não se torna possível quando uma régua teórica criteriosa é posta diante do horizonte de ação, mas seria papel dos mesmos críticos que o rejeitam expressar abertamente tanto o porquê de o rejeitarem quanto tonarem evidentes tal criteriosidade exigida pelo objeto de estudo. Parece-me que a universidade se enterra e é enterrada cada vez mais à sete palmos debaixo do solo, tornando-se irrastreável junto de suas críticas que, sim, são fortuitas, porém que não se projetam tal como deveriam diante da grandeza do acontecimento da revolução russa, tratando aqui do objeto em questão, que hoje tem somente um signo que a representa: a derrota. Tais considerações podem nos levar a um problema sobre a concepção universitária da crítica, que não consegue enxergar diante de seu objeto a possibilidade de verdadeiramente contradizê-lo a partir de suas próprias condições. Entretanto, isto é assunto para um outro momento.

Dentro dessa perspectiva, partidos em todo o mundo reagem à opressão do capital através das lentes já envelhecidas do leninismo, como que se recusando a caírem diante da morte. Críticos gozam em seus gabinetes de sua capacidade de enxergar o irrefreável fim, maior que todo projeto de ditadura do proletariado. “Nesse claro-escuro, surgem os monstros.”

Talvez devêssemos entender melhor essa frase do revolucionário italiano Antonio Gramsci e então permitirmos que esses temerosos monstros surjam. Isso significa dizer que a crítica necessita romper com os seus atuais espaços de reprodução e deixar com que se desdobre o negativo através de uma "filosofia em modo crônico", como conceituou o professor Vladimir P. Safatle em sua obra Alfabeto das colisões (2019). É direcionado a esse sentido que escrevo essa seção, quero revelar não a “monstruosidade” de Stalin, mas sim o ponto em que deforma a teoria marxista através de uma crítica imanente.

Infelizmente, não se faz possível aqui o estudo minucioso da história de todo o processo revolucionário russo, mas me posiciono diante a obra em que Stalin condensa de uma só vez uma das principais problemáticas de seu período para que possamos atingir ao menos um vislumbre do que será a suprassunção do estado atual da crítica.

Por fim, cabe o aviso de que não trabalharei com o conceito de materialismo histórico por conta do recorte focal da monografia.

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Como já citado: “O materialismo dialético é a teoria geral do Partido marxista-leninista.” Contudo, nos será propício a leitura de todo o parágrafo em que se encontra esta passagem: “O materialismo dialético é assim chamado porque a sua maneira de considerar os fenômenos da natureza, o seu método de investigação e de conhecimento, é dialético e a sua interpretação, a sua concepção dos fenômenos da natureza, a sua teoria, é materialista.”

Assim é escrita a introdução à obra de Stalin, um pequeno livreto que visava a ampla divulgação da filosofia marxista em solo soviético. Ou seja, Stalin procura, com uma linguagem simples e sem se preocupar em repetir frases inteiras apenas mudando algumas palavras de lugar, retomar conceitualmente o materialismo dialético e o materialismo histórico. Para isso, percebe-se inicialmente uma clara divisão epistemológica entre o materialismo enquanto concepção e a dialética enquanto método, fator decisivo para a formalizar a visão do autor.

Para caracterizar o “método dialético”, Stalin o contrapõe diretamente à metafísica em quatro pontos, a saber, em minhas palavras: a) Ligação orgânica entre os objetos; b) Movimento constante; c) Desenvolvimento de mudanças quantitativas em qualitativas; d) Unidade das contrárias.

A dialética seria, portanto, um método que enxergaria todos os objetos da natureza ligados organicamente entre si, o que faria com que o estudo isolado desses objetos fosse incapaz de compreendê-los totalmente, sendo necessário um estudo contextualizado pelos fenômenos que os rodeiam. Além disso, a natureza em que se assentam esses objetos é condicionada ao eterno movimento, o que exige um estudo sob a perspectiva, também, de suas eternas transformações. Dessas transformações, é apontado enquanto uma lei do método dialético que as pequenas mudanças quantitativas de um processo geram a sua própria mudança qualitativa, um salto brusco de um estado a outro. O motor dessas transformações estaria no cerne contraditório dos objetos que se constituem enquanto uma unidade de forças contrárias, característica que protagoniza o processo de mudança.

Três conclusões são extraídas por Stalin a partir dessa formulação. Em primeiro lugar, se não há fenômenos que podem ser estudados isoladamente, então os regimes sociais devem ser observados através das condições que possibilitaram o seu nascimento e o seu predomínio em relação ao regime anterior.

O regime de escravatura, nas condições atuais, seria um contrassenso, um absurdo contra a natureza. Mas o regime de escravatura nas condições do regime da comunidade primitiva em decomposição é um fenômeno perfeitamente compreensível e lógico, pois significa um passo em frente em relação à comunidade primitiva. (Stalin, 1945, p. 10)

Ou seja, a lei que prescreve uma ligação orgânica entre todos os objetos nos permitiria concluir um determinismo econômico sob o qual os regimes sociais sempre serão um desenvolvimento de seus anteriores, desenvolvimento esse que só pode ser assinalado levando em consideração o contexto histórico em que se encontra.

Em segundo lugar, se a mudança e o movimento são condições constantes aos objetos, então não podemos pensar em princípios eternos, o que se aplicaria aos regimes sociais: Se o velho tende dar lugar ao novo, então o capitalismo pode dar lugar ao socialismo. “Assim — escreve o autor — para não nos enganarmos em política, é necessário olhar para frente e não para trás.”

Em terceiro e último lugar, se considerarmos que mudanças quantitativas engendram mudanças qualitativas, “é claro que as revoluções realizadas pelas classes oprimidas constituem um fenômeno absolutamente natural, inevitável.” Ou seja, Stalin enxerga a revolução socialista como um resultado inevitável da realidade do regime capitalista, arraigando-se nos saltos qualitativos enquanto uma lei do desenvolvimento social.

Desenvolvido o que o autor entende pelo método dialético, é dado a hora de sintetizar as leis de funcionamento da concepção materialista, a saber, em minhas palavras: a) Materialidade intrínseca do mundo; b) Primazia da matéria sobre a ideia; c) Universo cognoscível.

Assim sendo, o materialismo seria uma concepção em que todo universo externo ao sujeito seria constituído da matéria em suas diferentes formas, o que nos leva a um natural primado empirista da matéria sobre a ideia, na qual esta seria um “reflexo” daquela. A este respeito escreve Stalin: (…) “A matéria é um fato primordial, pois é a origem das sensações, das representações, da consciência, enquanto a consciência é um dado secundário, derivado, pois é o reflexo da matéria”. Essa concepção enxerga que seríamos capazes de conhecer plenamente o universo dado sua essência puramente objetiva, o que tornaria, portanto, também a verdade objetiva, ao passo que o que ainda não nos é alcançável um dia será “pela ciência e pela prática”.

Tal como em seus escritos sobre a dialética, Stalin extrai três conclusões sobre os princípios do materialismo, fator que reforça a característica "pedagógica” do texto em seu contexto de alcançar uma massificada leitura. Em primeiro lugar, levando em consideração o método dialético já desenvolvido pelo autor, agora em conluio com os princípios da concepção materialista, o estudo dos fenômenos sociais deixa de ser meramente contingente e passa a ser necessário, tornando-se leis do desenvolvimento social.

Em segundo lugar, se consideramos que o mundo é cognoscível, significa que tais leis do desenvolvimento social também o são, tornando os estudos sociais exatos e leais às suas futuras aplicações práticas. Diz Stalin:

Assim, a ciência da história da sociedade, apesar de toda a complexidade dos fenômenos da vida social, pode tornar-se uma ciência tão exata como, por exemplo, a biologia, e capaz de fazer servir as leis do desenvolvimento social às aplicações práticas (…) Por isso, o socialismo, que outrora era o sonho de um futuro melhor para a humanidade, tornou-se uma ciência. (Stalin, 1945, p. 16)

Isto é, o autor enxerga a possibilidade de predizer os movimentos sociais a partir de seus estudos exatos.

Em terceiro lugar, se há uma primazia da matéria sobre a ideia, em um escopo ampliado veríamos uma determinação da vida espiritual de uma sociedade pelas suas condições materiais de reprodução. “O ser da sociedade, as condições da vida material da sociedade, eis o que determina as suas ideias, as suas teorias”.

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Assim Stalin conclui sua exposição acerca do materialismo dialético, ao qual é definida uma divisão epistemológica entre os dois. O materialismo seria a concepção da filosofia marxista que se baseia nos seguintes princípios já desenvolvidos: a) Materialidade intrínseca do mundo; b) Primazia da matéria sobre a ideia; c) Universo cognoscível. Já a dialética seria o método da filosofia marxista, este é divido em leis também já desenvolvidas: a) Ligação orgânica entre os objetos; b) Movimento constante; c) Desenvolvimento de mudanças quantitativas em qualitativas; d) Unidade das contrárias.

Seção 3: Análise comparativa do conceito de materialismo dialético para Marx e Stalin.

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Acredito que não há introdução melhor para esta sessão que o simples início ao processo o qual ela se propõe, as cartas estão dadas.

De início, gostaria de ressaltar a distinção mais evidente entre as duas perspectivas dos autores em questão. A separação epistemológica que Stalin ressalta utilizando as palavras “método” e “concepção” não se verifica na conceituação de Marx, pelo contrário. Como visto na Seção 1, Marx desenvolve aquilo que será seu materialismo através de uma crítica imanente à dialética hegeliana e, mesmo quando se detém unicamente no aspecto objetivo da realidade, faz questão de demonstrar que tal objetividade não está desvinculada da consciência. Afinal, ao se referir à exteriorização da consciência, demonstra que sua consequência é o pôr a coisidade:

Como o homem efetivo enquanto tal não é construído como sujeito, e por isto a natureza também não  —  homem é a natureza humana — , mas apenas a abstração do homem, a consciência-de-si, então a coisidade só pode ser a consciência-de-si exteriorizada. (Marx, 2004, p. 126)

Ou seja, Marx não entende o materialismo como separado epistemologicamente da dialética, mas sim enquanto seu momento de verdade. Ao enfatizar que o homem é a sua natureza humana, está viabilizando seu conceito de ser genérico em que todos os sujeitos se efetivam em seu gênero. Tal efetivação demanda um processo que não se finaliza em um aspecto subjetivo ou objetivo, mas os une em um encadeamento sensível. A fim de extrair com precisão a visão do autor, me permitirei citar trechos de fora do capítulo recortado em questão:

O homem  —  por mais que seja, por isso, um indivíduo particular, e precisamente sua particularidade faz dele um indivíduo e uma coletividade efetivo-individual (wirkliches individuelles Gemeinwesen)  —  é, do mesmo modo, tanto a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade pensada e sentida para si, assim como ele é também na efetividade, tanto como intuição e fruição efetiva da existência social, quanto como uma totalidade de externação humana de vida. Pensar e ser são, portanto, certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua. (Marx, 2004, p. 108)

O que está em jogo aqui é mais sútil do que a crítica que Marx faz a Hegel, pois a filosofia de ambos se desenrola em duas contrariedades evidentes. Aqui, Stalin se propõe enquanto um materialista, marxista, mas de tal modo que rompe com a visão particular de Marx ao investir em um materialismo empirista, que segue uma lógica positivista. Isto é, a divisão epistemológica se dá devido à secundarização, de acordo as próprias palavras do soviético, da consciência diante da “matéria”. A matéria é, pois, vista enquanto um primado empirista segundo o qual as leis do “método dialético” servem para descrevê-lo. De acordo com o soviético:

Ao contrário do idealismo, que considera o mundo como a encarnação da ‘ideia absoluta’, do ‘espírito universal’, da ‘consciência’, o materialismo filosófico de Marx parte do princípio de que o mundo, pela sua natureza, é matéria, que os múltiplos fenômenos do universo são os diferentes aspectos da matéria em movimento; que as relações e o condicionamento recíprocos dos fenômenos, estabelecidos pelo método dialético, constituem as leis necessárias ao desenvolvimento da matéria em movimento (…) (Stalin, 1945, p. 12)

Destarte, Stalin entende por realidade objetiva uma dimensão à parte do sujeito. A consciência enquanto “reflexo da matéria” quebra com a relação mútua entre o corpo e a natureza a qual Marx descreve; seu ser genérico agora está partido, pois não mais se relaciona com o seu gênero tal qual um corpo inorgânico, mas sim enquanto uma fonte orgânica sobre a qual repousa para que possa existir, sobre a qual depende.

O que podemos observar é um rompimento com a unidade sujeito-objeto que antes já estava partida pelo idealismo alemão que enxergava no objeto apenas uma nulidade, uma farsa. Agora, sujeito e objetos cindem-se novamente, contudo perante o primado empirista do objeto. A nulidade é transplantada ao sujeito, a consciência se torna uma farsa perante a esmagadora realidade material, um mero momento de aperfeiçoamento da matéria[1]. O resultado equivalente a esse procedimento da cisão dessa categoria em movimento é um positivismo, estabelece uma análise sobre o objeto baseada em uma razão esclarecedora. Não obstante o marxismo torna-se uma ciência nas palavras de Stalin. O que o soviético não percebe é que assim entrega-se à gramática daquilo que tenta superar, pois a falsidade do todo aglutina tudo aquilo que tenta esquecê-lo. Ao nomear a frente teórica de seu partido como uma ciência, Stalin está perpetuando a antiga divisão do trabalho, tornando os altos membros do partido uma realocação da origem da violência social. Marx já advertia sobre a imprecisão em legar uma autonomia à coisidade:

Além disso, é claro que a coisidade de maneira alguma é, portanto, [algo] autônomo, essencial diante da consciência-de-si, mas sim uma simples criatura, um [algo] posto (Gesetztes) por ela, e o [algo que é] posto, ao invés de confirmar-se a si mesmo, é apenas uma confirmação do ato de pôr, que por um instante fixa sua energia como o produto e, para fazer de conta  — mas só por um momento —, lhe concede o papel de um ser autônomo, efetivo. (Marx, 2004, p. 126)

É como se o fazer de conta tivesse sido atraente demais. Isso se deve a um aparato crítico carente epistemologicamente de denunciar por si mesmo a contradição social internalizada na própria razão.

Conclui-se que Stalin via na crítica uma espécie de determinação absoluta sobre o social, uma completa previsão das movimentações das estruturas das sociedades que virão a existir e um suposto mapeamento absoluto das que já existiram através de um determinismo econômico.

Vale ressaltar uma evidente virada materialista por parte de Marx diante do pensamento que se apresentava em sua época. Contudo, ele também enxergou prudentemente que a solução para os problemas dos hegelianos idealistas não seria uma mera tomada de posição empirista. Enxergara que o objeto de um sujeito só pode ser a confirmação de suas forças essenciais, caso contrário este objeto não lhe faria sentido, enxergara que tais forças essenciais só se assentam não através do sujeito, mas sim enquanto a “subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação, por isso, tem também que ser objetiva.”

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Conclui-se que os momentos de contradição entre as conceituações de Stalin e Marx sobre o materialismo dialético em suas obras Sobre o Materialismo Histórico e o Materialismo Dialético e Manuscritos econômico-filosóficos são, principalmente, dois. Em primeiro lugar: A divisão epistemológica entre o materialismo e a dialética enquanto concepção e método por parte de Stalin ao passo que Marx enxergara uma unicidade crítica. Em segundo lugar: Interligado com a primeira problemática, o materialismo dialético de Stalin tende a, novamente, cindir a relação sujeito-objeto sob a perspectiva de um primado empirista do objeto ao passo que Marx enxergara, mesmo que sempre tendo como horizonte a efetividade objetiva, uma relação mútua de determinação entre a existência subjetiva e a externação objetiva. Esta cisão tem como consequência a produção de um materialismo positivista, pois empirista.

Nota:

[1] É interessante aqui observar um momento de verdade presente na conclusão derivada das afirmações de Stalin. O fetichismo da mercadoria que sobrepõe ao uso a abstração da troca e a expoente expansão da alienação social bloqueiam a consciência diante da materialidade violenta. Contudo, Stalin admite essa condição enquanto pressuposto positivo de sua teoria, isto é, não enxerga esses fatores sobre uma visão crítica, apenas os posiciona como meras peças do existente, adotando sua gramática reificada.

Bibliografia

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

STALIN, Josef V. Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: Edições Horizonte, 1945.

Diogo Leme

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