Revista Parva Scientia
Willer Studio - Sigmund Freud, retrato, 1935.
Sumário:
I.
Bloco 1 (§§ 1-5): Sobre a investigação acerca do infamiliar.
Bloco 2 (§§ 6-17): Formas com que os significados de Heimlich [familiar] e de Unheimlich [infamiliar] apresentam-se internacionalmente.
Bloco 3 (§§ 18-19): Da conexão entre o Heimlich e o Unheimlich através do que é íntimo.
II.
Bloco 1 (§§ 1-7): O infamiliar no conto O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann.
Bloco 2 (§§ 8-11): O infamiliar como resultado do medo da castração em O Homem da Areia.
Bloco 3 (§ 12): O infamiliar como resultado da expressão de um desejo infantil em O Homem da Areia.
Bloco 4 (§§ 13-18): O infamiliar pelo âmbito do duplo.
Bloco 5 (§§ 19-21): O infamiliar pelo âmbito da repetição.
Bloco 6 (§§ 22-26): O retorno da recalcada concepção animista do mundo como fundamento do infamiliar.
Bloco 7 (§§ 27-28): Sobre a infamiliaridade para com a morte.
Bloco 8 (§§ 29-34): Casos complementares ao estudo do infamiliar.
III.
Bloco 1 (§§ 1-5): Uma reversão lógica sobre o princípio do infamiliar.
Bloco 2 (§§ 6-9): O infamiliar da vivência.
Bloco 3 (§§ 10-17): O infamiliar da fantasia.
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I.
Bloco 1 (§§ 1-5): Sobre a investigação acerca do infamiliar.
1. Freud inicia seu texto relacionando a imagem do psicanalista com o estudo da estética, algo incomum segundo o autor. Levanta essa questão, pois anuncia que o estudo do infamiliar é um estudo estético, mas que há um núcleo nesse conceito que o movimenta para além da mera descrição habitual, que o resume ao horror do desconhecido[1]. (§§ 1-2)
2. Freud aponta que não encontrara o núcleo do conceito de infamiliar nos escritos de estética de sua época, pois esses evidenciavam os grandes e belos sentimentos positivos, ao passo que a negatividade daquilo que aterroriza foi deixada de lado. Encontrara somente um ensaio chamado Sobre a psicologia do infamiliar (1906), do psiquiatra Ernest Jentsch, que evidenciou um campo de difícil estudo com diferentes graus de sensibilidade a depender dos sujeitos. Freud o acusa de uma certa obtusidade pelo fato de nunca ter sido particularmente atravessado pelo sentimento, fator importante para entender o conceito de infamiliar em sua totalidade segundo o autor[2]. Dado este panorama acerca dos estudos sobre o infamiliar, Freud pontua que a sua conclusão é a de que este sentimento está ligado ao que é aterrorizante ao passo que remete ao que é íntimo, familiar. Para tal, seguirá com a formulação de seu texto através da investigação linguística para então analisar casos em que habitualmente o sentimento de infamiliar é suscitado. (§§ 3-5)
Bloco 2 (§§ 6-17): Formas com que os significados de heimlich [familiar] e de unheimlich [infamiliar] apresentam-se internacionalmente.
1. Freud demonstra que não necessariamente aquilo que é infamiliar não é conhecido ou familiar. Apresenta a reversibilidade dessa dicotomia pontuando que nem tudo o que é novo e não familiar é necessariamente assustador. Deve-se, na verdade, acrescentar algo ao que é não familiar para que se torne infamiliar. Freud então traz a contribuição de Jentsch sobre o assunto que diz que aquilo que é infamiliar é aquilo sobre o qual nada se sabe, dando a entender que quanto mais se conhece sobre algo mais familiaridade se adquire com esse algo. Entretanto, o psicanalista não acredita que o conceito se esgota nessa relação e procura extrapolá-la. Procura primeiramente resgatar os significados do dicionário internacional sobre o infamiliar, passando pelo latim, grego, inglês, francês e italiano para então retornar à língua alemã. Pelo Dicionário da língua alemã (1860), de Daniel Sanders, retoma as significações da palavra Heimlich [familiar] e conclui que a própria palavra alemã que denota familiaridade aponta ao seu oposto, ao Unheimlich [infamiliar]. Com as informações que possui, demonstra que há duas esferas semânticas dentro da palavra Heimlich:
a. o que é confortável, confiável;
b. o que está encoberto, portanto oculto.
Sendo o Unheimlich apenas oposto ao primeiro significado, mas não ao segundo. Dessa maneira remonta a afirmação de Schelling que diz que o que é infamiliar é aquilo que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona. (§§ 6-17)
Bloco 3 (§§ 18-19): Da conexão entre o Heimlich e o Unheimlich através do que é íntimo.
1. Pelo Dicionário alemão (1854), dos irmãos Jacob e Wilhem Grimm, Freud percebe que o que transforma em estranho aquilo que não o era é a intimidade perante o que é familiar, tornando-se privado, isto é, por necessidade escondido, oculto, rapidamente infamiliar. Conclui: “Infamiliar é, de certa forma, um tipo de familiar.”[3] (§§ 18-19)
II.
Bloco 1 (§§ 1-7): O infamiliar no conto O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann.
1. Freud remonta Jentsch e sua teorização à cerca do infamiliar. A partir de seu entendimento da não compreensão como fator importante à sensação de infamiliaridade, Jentsch argumenta que seria por isso que autômatos, bonecos de cera e imagens do tipo causassem um sentimento de estranheza nas pessoas, pois não é possível uma confirmação imediata se são seres vivos ou não. Traz também os loucos e os epilépticos como exemplos, pois suscitariam um incômodo proveniente do desconhecimento das forças que regem imagens cotidianamente comuns. Apesar de acreditar que a teoria de Jentsch é insuficiente, Freud o retoma por declará-lo como importante por o fazer remeter o sentimento de infamiliaridade ao conto O Homem da Areia (1815), de E. T. A. Hoffman. Em sua análise, contudo, Jentsch focou no episódio da boneca Olímpia como parte fulcral desenvolvedora do infamiliar, enquanto que para Freud a principal imagem ligada a esse movimento estético do conto estaria no próprio Homem da Areia e a sua ação de arrancar os olhos das crianças. (§§ 1-3)
2. Freud resume, então, todo o conto de Hoffman. (§§ 4-7)
Bloco 2 (§§ 8-11): O infamiliar como resultado do medo da castração em O Homem da Areia.
1. Freud afasta a concepção de Jentsch sobre o infamiliar por ela se demonstrar insuficiente em descrever o movimento desse fenômeno estético no curso do conto de Hoffmann, reduzindo-a a uma interpretação racionalista, da qual Freud opõe-se claramente nesse texto[4]. No lugar de uma incognoscibilidade, o autor indica o medo da castração como principal causador da infamiliaridade do conto, figurado na imagem do Homem da Areia que arranca os olhos das crianças. Aqui a imagem dos olhos reposiciona-se como a imagem da genital, de tal maneira que o medo de ficar cego estaria atrelado ao medo da castração. Nesse sentido, o medo do Homem da Areia transmuta-se no medo de castração pelo pai mal, encarnado em Coppelius, aquele responsável pela morte do pai bom, que tenta impedir a castração de seu filho, Nathaniel. O lugar do recalque incide justamente na imagem de Coppelius, encontrando sua figuração na morte do bom pai, assim cindindo a imago paterna transposta posteriormente nas figuras do professor Spalanzani e do ótico Coppola, respectivamente o pai bom e mau. Nesse sentido, a boneca autônoma Olímpia produzida por Spalanzani indicaria a posição feminina de Nathaniel em relação ao seu pai em sua primeira infância, um complexo seu externalizado. Portanto, o amor de Nathaniel à boneca nos concluiria um processo narcísico de fixação ao pai e a impossibilidade de amar verdadeiramente qualquer outra mulher. (§§ 8-11)
Bloco 3 (§ 12): O infamiliar como resultado da expressão de um desejo infantil em O Homem da Areia.
1. Mesmo com a explicação da castração, a questão do sentimento de infamiliaridade em relação à boneca Olímpia não se esgota e Freud relega às bonecas não um medo, mas sim um desejo infantil que retorna, gerando uma sensação infamiliar. Argumenta que na infância as crianças relacionam-se com suas bonecas como se fossem pessoas vivas, o que as agrada ao invés de causar-lhes qualquer temor. (§ 12)
Bloco 4 (§§ 13-18): O infamiliar pelo do âmbito do duplo.
1. Freud, então, aponta para o duplo como um dos principais âmbitos do infamiliar. A ideia de duplicação do Eu gera uma confusão na delimitação das fronteiras do próprio Eu, de tal maneira que o sujeito se perde em outro Eu ou transporta o Eu alheio a si mesmo. Através de Otto Rank, a vida anímica primitiva ganha uma grande importância para Freud. Seus estudos sobre a alma, por exemplo, revelam ao autor a localização de um duplo na doutrina da alma, estruturada enquanto uma defesa da destruição do Eu. Freud também comenta da relação da duplicação genital como uma expressão da castração na linguagem onírica. Entretanto, esses processos constituem-se em uma fase de narcisismo primário, que, superado junto da vida anímica primitiva ou infantil, transforma rapidamente a possibilidade da imortalidade na evidência infamiliar da morte. (§§ 13-14)
2. Este protonarcisismo, como denomina Freud, não declina consigo, contudo, a representação do duplo, que se manifesta historicamente através da cisão do Eu em uma instância moral que o julga e é responsável por uma auto-observação, conduzindo um trabalho de censura psíquica. O autor aponta como em casos patológicos de delírio, nos quais o sujeito sente-se perseguido, essa instância moral pode praticamente ser visualizada pelo médico. Além disso, todas as representações do destino, aspirações do Eu que não se realizaram e vontades reprimidas dão também lugar à representação do duplo. Entretanto, argumenta Freud, nenhuma dessas explicações conseguem relativizar o grau de infamiliaridade proveniente da figura do duplo, sendo justamente esse o ponto produtor do infamiliar[5]. Freud pontua então que o âmbito do duplo é fundamental para a análise do infamiliar em Hoffmann, aparecendo em suas obras através da exploração da regressão a diversos momentos distintos do desenvolvimento do Eu, quando este ainda não tinha se cindido do mundo e dos outros. (§§ 15-18)
Bloco 5 (§§ 19-21): O infamiliar pelo âmbito da repetição.
1. Freud identifica na repetição o caráter de infamiliaridade no momento em que verifica no inconsciente anímico uma tendência à compulsão e à repetição, impondo-se sobre o princípio do prazer, “conferindo um caráter demoníaco a certos aspectos da vida anímica” (Ibidem, p. 79). Para tal, concede alguns exemplos de repetições involuntárias em sonhos próprios e no cotidiano quando aquilo que se entendia enquanto mero acaso passa a ganhar uma aura fatídica e inescapável. (§§ 19-21)
Bloco 6 (§§ 22-26): O retorno da recalcada concepção animista do mundo como fundamento do infamiliar.
1. Freud concede três exemplos para tratar do infamiliar: o conto O anel de Polícrates, de Heródoto, os quadros neuróticos obsessivos e o medo do “mau olhado”. Esses três casos suscitam aquilo que o autor nomeou como “onipotência dos pensamentos”, isto é, uma espécie de crença na possibilidade de os próprios pensamentos alterarem a realidade física. A partir dessa questão, Freud retoma como toda a conceituação do infamiliar remete à antiga concepção animista do mundo, que, segundo suas palavras, “se caracterizava pelo preenchimento do mundo com espíritos humanos, pela supervalorização narcísica dos próprios processos anímicos, pela onipotência de pensamentos e pela técnica da magia construída a partir disso” (Ibidem, p. 83). Ou seja, Freud está descrevendo um momento em que o chamado protonarcisismo ainda se defendia das objeções impostas pelo mundo diante de si. Nesse sentido, Freud pensa que é característico da constituição dos sujeitos um atravessamento pela fase do animismo primitivo, além de que o afastamento desse período não é possível sem que ele legue ao sujeito rastros de seu conteúdo. Assim, tudo o que é infamiliar seria a condição da expressão desses rastros. (§§ 22-25)
2. Assim, Freud pontua duas observações sobre sua investigação:
a. Se a angústia é fruto de um processo de recalque do afeto de uma moção de sentimento, então o retorno do que foi recalcado deve obter a característica de ser angustiante e enquadrar um grupo específico de casos que provocam angústia. Essa espécie angustiante seria o infamiliar.
b. Além disso, a questão linguística de aproximação do significado daquilo que é familiar àquilo que é infamiliar deve estar associada à questão psíquica de recalcamento da vida anímica. Pois, o que se apresenta como infamiliar não possui em si nada de novo ou exclusivo, mas é antes fruto de algo íntimo à vida anímica, que foi afastado pelo processo de recalcamento e que agora retorna infamiliarmente. Assim, a frase de Schelling prestigiada por Freud ganha especial importância ao revelar que o que é infamiliar é o que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona. (§ 26)
Bloco 7 (§§ 27-28): Sobre a infamiliaridade para com a morte.
1. Diante desse quadro, Freud acredita que a relação da humanidade com a morte é uma das menos alteradas com o decorrer da história no domínio dos pensamentos e sentimentos. Para tal, ele pontua duas principais causas (§§ 27-28):
a. A força das reações emocionais originárias. Ao pontuar a proximidade da humanidade com sua consciência primitiva, Freud não distingue dessa relação a manutenção milenar do medo da morte enquanto um recalcamento desta, tornando infamiliar o que é propriamente primitivo. Mesmo com a superação da vida anímica, o morto enquanto um inimigo dúbio do vivo que pretende leva-lo consigo não se esvai simplesmente, mas é substituído pela piedade aos mortos.
b. A incerteza do conhecimento científico. Segundo o autor, mesmo que seja uma máxima a certeza da morte, ela não é esclarecida diante da consciência, dessa maneira não possuindo espaço na representação humana.
Bloco 8 (§§ 29-34): Casos complementares ao estudo do infamiliar.
1. Através dos exemplos do “olho gordo” e do personagem Mefistófeles, da épica Fausto, de J. W. Goethe, Freud recupera uma causa de infamiliaridade, a de uma pessoa com más intenções que possui consigo a corroboração de forças místicas desconhecidas. O infamiliar nesses casos teria praticamente a mesma causa que a sua sensação na observação da loucura e da epilepsia, nas quais forças desconhecidas impõem-se sobre os sujeitos, mas que poderiam terem sido notadas através de uma investigação nos recônditos da própria personalidade. Foi dessa maneira que na Idade Média muitas doenças ganharam a característica de possuírem origens demoníacas. Do mesmo modo, também a psicanálise pode soar infamiliar para alguns. (§§ 29-31)
2. Ainda, membros cortados, especialmente se forem condicionados a serem autônomos, causam uma sensação de infamiliaridade por estarem ligados ao complexo de castração. Logo em seguida Freud comenta do medo de ser enterrado vivo, proveniente de uma outra fantasia que por si só não era aterrorizante como a que se transmutara: a fantasia de viver no ventre materno. (§ 32)
3. Há uma característica geral sobre o infamiliar apontada por Freud: a dissipação das fronteiras entre a fantasia e o que é real, “quando um símbolo assume a plena realização e o significado do simbolizado e coisas semelhantes.” (Ibidem, p. 93) Aqui, o que é infantil e também domina a vida anímica do neurótico seria a grande ênfase na atividade psíquica durante a leitura da realidade, nos conectando à questão da onipotência dos pensamentos. Então, Freud concede a essa condição infamiliar um exemplo de um conto lido por ele na revista inglesa chamada Strand. (§34)
4. Por último, mas sendo o exemplo que, segundo Freud, melhor corrobora para a interpretação do infamiliar, o autor pontua a infamiliaridade dos homens com o genital feminino, remetendo a um antigo lar de todos os sujeitos vivos, mas que de alguma forma fora recalcado e agora retorna em um estranhamento. (§ 34)
III.
Bloco 1 (§§ 1-5): Uma reversão lógica sobre o princípio do infamiliar.
1. Freud pontua a justeza do fundamento do infamiliar: o familiar-doméstico que sofreu um recalcamento e que dele retorna. Contudo, pontua também que para todo exemplo desenvolvido sobre seu princípio, há um outro que o contrapõe. A narrativa de Heródoto sobre o tesouro de Rampsinito possui em comum com o conto A história da mão amputada (1826), de Hoffmann, o fator da mão amputada, mas só neste último o infamiliar pode ser localizado. A imediata realização do desejo em O anel de Polícrates traz um sentimento infamiliar, mas nos contos maravilhosos alemães, nos quais este mesmo fator se encontra presente, não se pode dizer que há infamiliaridade. (§§ 1-3)
2. A partir de outros exemplos contraditórios com o até então formulado princípio do autor, dentre eles o conto da Branca de Neve, Freud coloca em questão as bases daquilo que antes afirmava em tom positivo e delimita a necessidade de se responder a essas questões em aberto mesmo que suscitem uma resolução estética, pois, sem respostas poderiam deslegitimar sua teoria até aqui desenvolvida. (§§ 4-5)
Bloco 2 (§§ 6-9): O infamiliar da vivência.
1. Freud justifica essas contradições separando dois modos de experienciar o infamiliar, através da fantasia e da vivência. Nessa última condição, aquilo que se apresenta como infamiliar comumente está associado ao grau de superação do sujeito da vida anímica, isto é, quanto mais o sujeito se encontra descolado da onipotência dos pensamentos, da realização imediata dos desejos, da ressureição dos mortos, menos infamiliar se sentirá em relação à realidade. Assim sendo, este tipo condição de experiência do infamiliar estaria atrelada à crença na realidade material tal como ela se apresenta. (§§ 6-8)
2. Já na experiência do infamiliar através do retorno de complexos infantis recalcados tem-se uma lógica representacional em funcionamento ao invés de uma crença no material. Ou seja, a realidade psíquica toma o lugar da realidade material. Contudo, o autor sugere que as delimitações entre essas duas possibilidades de experienciar o infamiliar não são tão claras efetivamente e que muitas vezes suas fronteiras se misturam[6], podendo os complexos infantis estarem atrelados às crenças primitivas não superadas. (§ 9)
Bloco 3 (§§ 10-17): O infamiliar da fantasia.
1. Freud aponta para o infamiliar condicionado pela experiência com a fantasia como mais complexo e merecedor de um comentário próprio. Afinal, na fantasia a dicotomia entre o recalcado e o superado é sublevada a partir do momento que a ficção permite o escape à lógica do mundo empírico. É por isso que temos casos parecidos, mas que em só um deles o infamiliar é realmente despertado, pois ele está ligado a uma lógica de julgamento. Quando lemos um conto que está inserido em um universo cujas leis suportam a aparição de espíritos e eles, então, aparecem de fato, não há sentimento infamiliar, pois o que aconteceu está pressuposto pela realidade em questão, tal como um acontecimento comum não nos estranharia na realidade empírica. Contudo, quando o autor inscreve uma realidade supostamente comum e a extrapola através da ficção, ele pode assim causar em seu leitor um grande sentimento infamiliar. Afinal, como explica o autor, o leitor é guiado pela narrativa do escritor, que pode enganá-lo em relação aos limites da realidade que descreve. A frustração resultante dessa enganação muitas vezes converte-se em uma fixação perante o que se lê. Nesse sentido, o infamiliar é oriundo da vida anímica superada, contudo o infamiliar que advém do que fora recalcado se apresenta mais resistente diante da vida anímica superada, podendo este último desaparecer na fantasia, enquanto que o retorno de complexos infantis pode se apresentar tão infamiliar na ficção quanto na vivência. (§§ 10-15)
2. Freud então conclui seu texto elucidando exemplos que há pouco se apresentaram como contraditórios e aferindo que sobre a solidão, o silêncio e a escuridão não se pode dizer muito a não ser que são fatores ligados à angústia infantil dos quais o autor trata sobre em seus Três ensaios sobre a teoria sexual (1905). (§§ 16-17)
Notas:
[1] “Gostaríamos de saber o que é esse núcleo comum, que permite diferenciar, no interior do angustiante, algo ‘infamiliar’.” (Freud, 2024, p. 29)
[2] Evidenciando o caráter estético desse conceito, pois se encontra no campo da formulação sensível, lugar onde a experiência tem papel central.
[3] (Ibidem, p. 49)
[4] Tal oposição se faz interessante ao pensarmos o infamiliar enquanto um fenômeno estético e então concluirmos uma clara limitação do pensamento ocidental que, ao cindir a natureza da cultura, como cinde a consciência do corpo, recai em um descontrole diante do que mobilizou, aproximando de si aquilo que deseja evitar.
[5] “Nada desses conteúdos poderia esclarecer o propósito de defesa que os projetou para fora do Eu, como se fossem um estranho.” (Ibidem, p. 73)
[6] “Quando pensamos que as crenças primitivas se acoplam no mais íntimo aos complexos infantis e, de fato, neles se enraízam, não nos admiramos muito com o desaparecimento dessas delimitações.” (Ibidem, p. 107)
Diogo Leme