Anotações sobre o “Funcionalismo hoje”

Stefan Moses - Theodor W. Adorno, autorretrato, 1963.

Sumário:

Bloco 1 (§§ 1-2): Sobre o material e o ornamental.

Bloco 2 (§§ 3-5): A falsa divisão entre o aplicado e o esteticamente autônomo.

Bloco 3 (§§ 6-7): O limite do funcionalismo.

Bloco 4 (§§ 8-9): Da contradição entre trabalho manual e fantasia.

Bloco 5 (§§ 10-13): Impasses para uma arquitetura verdadeiramente funcional.

Bloco 6 (§14-15): Considerações finais acerca das artes aplicadas e autônomas.

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Bloco 1 (§§ 1-2): Sobre o material e o ornamental.

Após breves saudações, Adorno introduz sua palestra afirmando a ideia de que a adequação ao material sobre o qual se trabalha supõe uma divisão do próprio trabalho e que esse fato deve ser levado em conta não só pelos técnicos como também pelos artistas.

Adorno então introduz o conceito de ornamento para debatê-lo dentro do contexto da arquitetura. Para isso, demonstra que em certo momento a arte deixou de fornecer um cânone e que então a esquematização kantiana da estética imperou sobre sua existência, na qual aquilo que é verdadeiro ou ideológico passa a ser definido através da lógica imanente da própria obra, sendo nomeada por Kant como a fórmula da finalidade sem fim. Adentrando na dinâmica histórica dessa fórmula, Adorno aponta uma transição: Aquilo que se identifica como necessário passa a se tornar supérfluo com o tempo através da perca de seu sentido simbólico, assim tornando-se um ornamento.

Bloco 2 (§§ 3-5): A falsa divisão entre o aplicado e o esteticamente autônomo.

Adorno introduz o pensamento de um grande crítico ao ornamento, proveniente do funcionalismo alemão, Adolf Loos. Este distinguia-se de seu tempo por sua constatação de que seria problemático o acréscimo de características a uma obra utilitária que não sejam exigidas pelo uso desta obra – os ornamentos. No funcionalismo adotava a ideia corrente de que havia uma clara divisão entre o que é aplicado e o que é esteticamente autônomo.

Adorno contrapõe-se a essa visão apontando que tal divisão na verdade é mais artificial do que parece, pois acreditar na existência de algo que seja unicamente estético em si mesmo é uma ilusão[1] tal qual acreditar na possibilidade de um objeto cuja existência esteja absolutamente direcionada à sua finalidade. Consequentemente Loos, segundo Adorno, não abarca uma análise da totalidade da movimentação do ornamento na arte, se limitando apenas à arquitetura, sendo uma das ramificações desse trajeto intelectual a sua filiação à ideia de uma construção subordinada ao material. Este pensamento (“não dialético”, como descreve Adorno) era apoiado em uma crença no “material enquanto tal” [2], isto é, puramente isolado.

Por sua vez, a ideia de um material que é dotado de uma forma própria consideraria naturalmente um sentido imanentemente presente nesse material, como pregara a estética simbolista. Adorno utiliza dois processos sociais distintos para contrapor esse pensamento, sendo um deles a historicização dos materiais artísticos e a pontuação da mudança de suas características singulares por uma padronização da indústria que não admite uma “beleza inata”. O outro processo social citado é o da crise que a arte autônoma passava nos tempos do autor, demonstrando uma impossibilidade de se extrair qualquer sentido inato ao material. Adorno então segue com um exemplo para demonstrar o momento ilusório da funcionalidade no qual ele a descreve ligada ao aqui e agora, uma funcionalidade social, que por si só é paradoxal, pois o social admite previamente irracionalidades - chamadas por Marx de faux frais ou despesas adicionais da produção - , traço contraditório à funcionalidade e que se irradia dos meios sociais aos seus fins. Portanto, o que Adorno chama de horror diante da técnica, além de ser reacionário, é também o horror diante da violência gerada pela irracionalidade social. Tal horror, argumenta Adorno, não é superado pelo funcionalismo de Loos, mas o reforçaria.

Bloco 3 (§§ 6-7): O limite do funcionalismo[3].

Adorno caracteriza o trabalho de Loos como obsessivamente puritano, como a tentativa brusca de um domínio completo da natureza que se refletia em uma hostilidade à cultura. O autor, então, condena como carentes de prática objetos que são moldados para serem impiedosamente práticos. A indignação diante dos ornamentos por parte de Loos já se manifestou, aponta Adorno, em uma crítica à pichação como característica de atraso social de uma nação, ao mesmo tempo em que Loos se recusaria a assim descrever a França, que foi palco do surrealismo, movimento que valorizou tal tipo de expressão artística. Adorno pontua que tentar se afastar da expressividade é ainda uma expressão de negação, e que para realiza-lo tem-se o custo para tal. O autor então evidencia essa questão através da psicanálise, que demonstra que a intenção simbólica do inconsciente, por tendência mimética, se associa rapidamente às formas funcionais[4]. Isso ocorre mesmo antes dos artistas mimetizarem a realidade em suas obras, o que futuramente se encadeia em uma transformação do que é símbolo em ornamento e do que é ornamento em algo supérfluo, sendo todo o símbolo de origem natural. A dimensão interior que as formas naturais ganham foi antes exterior, sendo todo processo simbólico fruto da objetividade, o que explica o fato de que ornamentos não podem ser inventados.

Adorno então suscita uma contradição em voga que só se torna visível a partir de suas considerações até então. Afinal, como demonstra o autor, Loos estava ligado a valores utópicos, entretanto burgueses. Para ele a tecnificação do mundo e o abandono do trabalho desembocariam em um fim do ornamento. Entretanto, a insuficiência das formas puramente funcionais se demonstrou através de seu silêncio violento diante da realidade. Ao mesmo tempo, criticar essas formas com o intuito de nelas adicionar a fantasia resultaria no que os próprios funcionalistas criticaram, em um ornamento, em um enfeite[5].

Bloco 4 (§§ 8-9): Da contradição entre trabalho manual e fantasia.

Adorno aponta para o trabalho manual e a fantasia como polos dessa contradição evidenciada na arquitetura. Ele então dá uma nova perspectiva de leitura a essa questão, conceituando o trabalho manual de duas maneiras: a primeira como presente no fazer artístico, diferentemente do que se pensa comumente, devido à fundamental necessidade de se ter familiaridade com o material que se utiliza para desenvolver uma obra. Já a segunda maneira trata de uma abordagem (por parte dos arquitetos) do “manual” como desvencilhado de qualquer ideologia, o que é falso, pois tal perspectiva transforma o manual justamente naquilo que essa abordagem se dedicou a atacar: em uma repetição reificada tal como é o ornamento, afinal fetichiza-se.

Já para tratar do conceito de fantasia, Adorno rapidamente recupera Walter Benjamin que a definiu como “a capacidade de interpolação nas coisas mínimas.” Logo em seguida o autor descarta duas possibilidades de se pensar a fantasia: Ela não é aquilo que caracterizaria a arte enquanto creatio ex nihilo (criar a partir do nada), como pensava Loos da arte autônoma, tampouco é uma antecipação do material. Ela mora, pois, na inervação desse meio entre o que poderia ser chamado de forma e material. Ambos carregam consigo a história e, portanto, o espírito da sociedade e retornam à obra de arte questões sobre o próprio conteúdo histórico que carregam. A função, continua Adorno, a lei formal e o espaço convergem-se sem nunca reduzirem-se em si mesmos[6]. O senso espacial, por sua vez, deve ser integrado à fantasia arquitetônica de modo a articulá-lo por meio das funções.

Bloco 5 (§§ 10-13): Impasses para uma arquitetura verdadeiramente funcional.

Adorno afirma que o senso espacial deve ser uma característica fundamental a ser levada em conta pela grande arquitetura. Realiza um paralelo com a música em que a musicalidade não deve ser representada como uma mera abstração do tempo contado no metrônomo, mas sim a invenção de estruturas musicais a partir da necessidade de organizar esse tempo. Assim se aproximaria a arquitetura, na qual o espaço não deve ser considerado como um mero dado abstrato, mas deve ser entendido como algo que atravessa todos os aspectos da funcionalidade, sendo esta o conteúdo da tensão entre forma e material, isto é, o lugar da expressão subjetiva arquitetônica. Ou seja, o arquiteto não deve criar algo no espaço, mas a partir dele. Portanto, segundo Adorno, a grande arquitetura seria aquela que mais levaria a cabo a mediação entre construção formal e função.

Entretanto, Adorno aponta para uma contradição que se impõe à arquitetura, uma contradição das forças de produção. Segundo o autor, uma arquitetura verdadeiramente humana considera uma funcionalidade às pessoas socialmente concretas e se projeta a elas imaginando-as melhores do que elas são tendo em vista o nível de desenvolvimento da técnica representada pelo estágio em que se encontram suas forças produtivas. Contudo, a fragmentária consumação das obras de Loos, Corbusier e Scharoun seriam exemplos, afirma Adorno, de um antagonismo que se desenrola a partir do desenvolvimento das forças de produção que por sua vez são restritas às relações de produção impostas, o que deflagaria uma limitação da arquitetura diante de tal contradição, limitação essa que aparece pela necessidade de se atender de alguma forma à funcionalidade, caso contrário não estaria sendo arquitetura, entretanto é dentro dessa condição que não se realiza plenamente enquanto arte autônoma de tal maneira que negue a totalidade falsa[7].

Adorno então pontua como essa antinomia se apresenta em um âmbito mais geral da arte: na movimentação de seu conceito. Afinal, a obra de arte deve se efetivar autonomamente, caso contrário se degradará por aquilo que tenta negar. Ao mesmo tempo, nenhuma obra de arte se desvencilha completamente daquilo que nega, o que a faz carregar esse fragmento da realidade que não se devincilhou como constituinte de sua lógica interna[8]. O autor então enfatiza que quanto mais a arte se afastar de suas origens “mágicas” (autônomas) mais ela se aproximará perigosamente de um estado contra a qual a própria arte nada pode fazer, exemplificando a situação com Thornstein Veblen, que reivindicava uma vida completamente mecânico-causal em contraposição ao mundo de imagens, gerando o contrário daquilo que lutava por, a reificação ainda maior do pensamento por atá-lo à lógica já reificada da técnica[9]. Tal fato demonstra a importância de uma crítica a partir da própria técnica concreta, isto é, uma crítica imanente à técnica.

Adorno então aponta como outra contradição inerente ao capitalismo a questão da utilidade. No funcionalismo pensou-se, comenta o autor, que a entrega completa da estética à utilidade viabilizaria um escape do mundo reificado, reabilitando as pessoas à utilidade das coisas, encaminhando-as para uma emancipação da dicotomia entre o que é útil e o que não é. Entretanto, objeta o autor, o problema dessa concepção é um engano sobre o caráter do útil, pois o fetichismo da mercadoria enfeitiça a produção (portanto a técnica) ao lucro, contaminando todo o valor de uso das mercadorias através da unilateralização produzida pela hegemonização do valor de troca. Isso apontaria também para uma contradição mais geral da arte que teria como parte de sua lógica interna a crítica feroz daquilo que nela é útil àquilo que nela não o é, ao passo que tudo o que nela seja útil fecha-se contra suas próprias possibilidades[10].

Bloco 6 (§§ 14-15): Considerações finais acerca das artes aplicadas e autônomas.

A fim de finalizar sua exposição, Adorno faz dois principais apontamentos que partem da seguinte colocação: O fazer artístico se encontra em crise, pois ele não pode mais seguir um caminho pré-traçado, obrigando com que o artista vá para além de seu ofício em particular para que então possa verdadeiramente realizá-lo. O primeiro apontamento seria de que o artista deve prestar contas de seu trabalho a si mesmo pela ótica da teoria social, o que significa que a obra de arte deve ser pensada a partir de sua posição ocupada na sociedade e das restrições sociais observadas. O segundo apontamento seria o de que não só a arquitetura como toda a arte aplicada exige uma reflexão estética sobre si mesma. Ao assim dizer, Adorno ratifica sua posição realizando um preâmbulo sobre o que significa de fato uma reflexão estética. Para além de meras conceituações formalistas, a estética encontra-se em toda suposição que abstrai-se por um momento de uma tarefa imediata. O autor então defende sua posição ao verificar que todas as considerações feitas em sua apresentação fazem-se necessárias ao debate e são estéticas, sendo a estética, portanto, uma necessidade prática. Essa estética já não mais deve atribuir-se de pensar sobre o belo em si, pois este seria resultado das contradições internas da própria obra de arte[11]. Por sua vez, a arte não seria mais o objeto único dessa nova estética, aponta o autor, pois a reflexão sobre a obra de arte deveria levar para além de si mesma.

Notas:

[1] “A finalidade sem fim é a sublimação dos fins. Não existe elemento estético em si mesmo, mas somente como um campo de tensões de tal sublimação.” (Adorno, 2020, p. 165)

[2] “Para sua honra, Loos recua diante dessa consequência, de modo aliás semelhante aos positivistas, que gostariam de reprimir na filosofia o que nela lhes parece poesia, mas não entendem a poesia mesmo como um problema para o tipo de positividade que defendem.” (Ibid. p. 166)

[3] “Até hoje o limite do funcionalismo tem sido o limite do caráter burguês como senso prático.” (Ibid. p. 168)

[4] “Formas funcionais [Zwecformem] são a linguagem de sua própria funcionalidade.” (Ibid. p. 170-171)

[5] “Confirma-se a suspeita das Minima Moralia de que não é mais possível habitar. A sombra opressiva da instabilidade, daquelas migrações que tiveram seu terrível prelúdio nos deslocamentos dos anos de Hitler e de sua guerra, pesa sobre a forma de todo habitar. A consciência deve apreender essa contradição como necessária, sem que possa se tranquilizar com isso. Caso contrário, ela penderia para o lado da catástrofe que continua a pairar como uma ameaça. O passado recente – os bombardeios – colocou a arquitetura em uma situação da qual ela não conseguiu escapar.” (Ibid. p. 173)

[6] “O entendimento da filosofia de que nenhum pensamento conduz a um elemento primeiro e absoluto, e que tal elemento é produto de uma abstração, alcança até o íntimo da estética.” (Ibid. p. 178)

[7] “Até mesmo na falsa necessidade das pessoas vivas há algo de liberdade, aquilo que a teoria econômica chamava de valor de uso por oposição ao valor abstrato de troca.” (Ibid. p. 182)

[8] “Quando a arte erradica completamente a memória de seu ser-para-outro, ela se transforma em fetiche, naquele absoluto autoproduzido, e portanto já relativizado, tal como era a beleza sonhada pelo Jugendstil. Ao mesmo tempo, a arte é obrigada a buscar o puro ser-em-si se não quiser cair vítima daquilo que ela percebeu como problemático.” (Ibidem)

[9] “No falso estado total [falschen Gesamtzustand] nada apazigua a contradição.” (Ibid. p. 183)

[10] “O segredo sombrio da arte é o caráter fetichista da mercadoria.” (Ibid. p. 185)

[11] “A beleza hoje não tem outra medida que a profundidade com a qual as composições sustentam as contradições que as sulcam e que elas dominam somente à medida que as perseguem, e não quando as ocultam. A beleza meramente formal, seja lá o que isso for, seria nula e vazia. A beleza do conteúdo se perderia na fruição sensível e pré-artística do observador. A beleza ou é resultado de um campo de forças ou não é nada.” (Ibid. p. 188)

Fichamento escrito por Diogo Leme.

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